domingo, 12 de abril de 2009

A derradeira tentação


Há alguns anos mantenho o hábito de assistir ao filme A Última Tentação de Cristo no feriado da Semana Santa. Esse “assistir ritualístico” tornou-se para mim, agnóstico-ateu em constante crise, um importante contraponto ao catolicismo reinante, à pseudo-compaixão dos crentes em Cristo...

Opiniões religiosas à parte, não estou aqui para escrever sobre os aspectos teológicos do filme, embora sejam por demais interessantes. Penso apenas escrever sobre as características artísticas da Última Tentação – mas sei também que não sou apto para fazer análises intrincadas, estabelecer relações complexas, ou seja, aquilo que uma critica ou análise ‘séria’ deveria abordar. No entanto, reconhecido humildemente as minhas limitações interpretativas, quero aqui comentar duas ou três cenas que tornam este o melhor filme sobre a vida de Cristo e para mim especificamente um dos 3 melhores do diretor Martin Scorsese (os outros dois são: Taxi Driver e Touro Indomável).

Sem mais delongas vamos a algumas cenas. Logo de inicio, na cena em que “conhecemos” Jesus somos confrontados com toda uma série de pré-saberes, preconceitos e conceitos em nós incutidos, em grande parte, por obras de arte em consonância com os dogmas católicos. Ou seja, na apresentação de nossa personagem titulo conhecemos um homem atormentado, mesmo que ainda não explicitamente, por vozes internas. Ele trabalha sob a madeira, “um marceneiro...” é possível pensar instantaneamente em uma dedução mais do que correta. Contudo não um marceneiro de portas, mesas e outros objetos corriqueiros como normalmente assistimos em outros filmes. Aqui Jesus é um feitor de cruzes. Um colaborador indireto da opressão Romana, como Judas (isso o tal traidor, se você deduziu corretamente) afirma ao conhecer o proto-messias ainda nesta primeira cena.

É por ter essa perspectiva não usual e menos dogmática ao nos apresentar Jesus que considero essa cena de introdução uma das melhores do filme. Ali já temos toda a complexidade, o duelo entre a natureza divina e humana, o medo do desconhecido, em suma o emaranhado problemático que é o Filho do Homem.

Mais adiante temos uma cena clássica e de conhecimento geral: o Batismo de Jesus. A cena é clássica, mas mais uma vez a perspectiva adotada por Scorsese foge completamente do convencional. Antes de sabermos quem é João Batista (aquele que precederia o Messias) somos arrastados por um turbilhão rítmico de tambores, cantorias, pessoas em transe (algo semelhante aos cultos de religiões de matriz africana) e lá no meio do riozinho um homem de costas a fazer um discurso violento. Esse é João Batista, retratado mais velho e bem mais “selvagem” que o normal... Atentem para o dialogo que precede o famoso momento do “batismo”, é sem duvida muito bem articulado.

O que mais chama a atenção nesta cena: o estranhamento de assistir algo semelhante (músicas, gestos e atitudes) a um ritual pagão. Isso destoa do comunalmente plácido, singelo e insosso Batismo. Surpreendente, os religiosos fervorosos devem se sentir ultrajados...

Outra cena. Medrosamente após a entrada triunfal em Jerusalém e de expulsar os “vendilhões do Templo”, Jesus assustado pelo furor da população e pela presença de centuriões romanos foge auxiliado pelo seu melhor amigo Judas (isso o traidor!). Em meio a um grande conflito (o que até este momento representa apenas mais um) Jesus pede ao seu mais adorável discípulo e motivador para ser traído, apresentando para o chocado e futuro-simbólico-grande-traidor-da-humanidade (ode ao hífen!) argumentos convincentes para que tal ação seja realizada.

A cena nem é das mais brilhantes, mas a atuação de Harvey Keitel (Judas) na sua melhor durante todo o filme, e de Willem Dafoe (Cristo) vale como um dos pontos altos do filme.

E claro por fim – porém não menos importante, como se diz por aí –, destaco a cena que dá nome ao filme: A ultima tentação. Neste momento a grandeza do roteiro se impõe. O Jesus medroso, conflituoso e demasiadamente incerto sobre a personalidade divina – e em conseqüência da necessidade de ser oferecido como sacrifício – se revela. É o “lado” humano sobrepondo-se ao divino. O homem venceu o Deus. Mas até quando, questionamos. Acostumados com as idas e vindas da incessante dialética da personagem seria muito fácil aceita-la em paz... Quanto a isso a resposta não tarda.

Damos-nos conta afinal e ao final que Jesus sempre será um atormentado, o Cristo da última tentação é “de momentos” e estranhamente sazonal. Eis aí o grande mérito de Scorcese, transferir toda essa riqueza para uma história popularíssima, “a mais representada de todos os tempos”. Tentei fazer por aqui apontamentos, uma vez que seria por demais exaustivo comentar outras tantas cenas excelentes, com fotografias e trilhas em perfeita composição. Para aqueles que não assistiram A Última Tentação de Cristo vale fazê-lo o quanto antes, não espere a próxima Semana Santa. Ah, aliás, não entrei em nenhum momento neste post no que seria a última tentação, mas posso afirmar que O Código da Vinci é ainda mais simplório se comparado ao filme.



Jean Carllo

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